arte: Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade

Manifesto Antropofago[1] — (1928)


Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Philosophicamente.
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Unica lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os collectivismo [sic]. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
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Tupy, or not tupy that is the question.
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Contra todas as cathecheses. E contra a mãe dos Gracchos.
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Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropofago.
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Estamos fatigados de todos os maridos catholicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psychologia impressa.
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O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeavel entre o mundo interior e o mundo exterior. A reacção contra o homem vestido. O cinema americano informará.
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Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hypocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No paiz da cobra grande.
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Foi porque nunca tivemos grammaticas, nem colecções de velhos vegetaes. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mappa mundi do Brasil.Uma consciencia participante, uma rythmica religiosa.
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Contra todos os importadores de consciencia enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade prelógica para o Sr. Levi Bruhl estudar.
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Queremos a revolução Carahiba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria siquer a sua pobre declaração dos direitos do homem.A edade de ouro annunciada pela America. A edade de ouro. E todas as girls.
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Filiação. O contacto com o Brasil Carahiba. Oú Villeganhon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, á Revolução Bolchevista, á Revolução surrealista e ao barbaro technizado de Keyserling. Caminhamos.
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Nunca fomos cathechisados. Vivemos atravez de um direito sonambulo. Fizemos Christo nascer na Bahia. Ou em Belem do Pará.
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Mas nunca admittimos o nascimento da logica entre nós.
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Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro emprestimo, para ganhar comissão. O rei analphabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita labia. Fez-se o emprestimo. Gravou-se o assucar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a labia.
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O espirito recusa-se a conceber o espirito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vaccina antropofagica. Para o equilibrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores.
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Só podemos attender ao mundo orecular.
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Tinhamos a justiça codificação da vingança. A sciencia codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabú em totem.
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Contra o mundo reversivel e as idéias objectivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dynamico. O individuo victima do systema. Fonte das injustiças classicas. Das injustiças romanticas. E o esquecimento das conquistas interiores.
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Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
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O instincto Carahiba.
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Morte e vida das hypotheses. Da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Subsistencia. Conhecimento. Antropofagia.
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Contra as elites vegetaes. Em comunicação com o sólo.
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Nunca fomos cathechizados. Fizemos foi Carnaval. O indio vestido de senador do Imperio. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas operas de Alencar cheio de bons sentimentos portuguezes.
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Já tinhamos o communismo. Já tinhamos a lingua surrealista. A edade de ouro.Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú.[2]
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A magia e a vida. Tinhamos a relação e a distribuição dos bens physicos, dos bens moraes, dos bens dignarios. E sabiamos transpor o mysterio e a morte com o auxilio de algumas formas grammaticaes.
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Perguntei a um homem o que era o Direito. Elle me respondeu que era a garantia do exercicio da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-oSó não há determinismo, onde há mistério. Mas que temos nós com isso?.
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Contra as historias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem Cesar.
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A fixação do progresso por meio de catalogos e apparelhos de televisão. Só a maquinária. E os transfusores de sangue.
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Contra as sublimações antagonicas. Trazidas nas caravellas.
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Contra a verdade dos povos missionarios, definida pela sagacidade de um antropofago, o Visconde de Cayrú: – É a mentira muitas vezes repetida.
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Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jaboty.
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Se Deus é a consciencia do Universo Increado, Guaracy é a mãe dos viventes. Jacy é a mãe dos vegetaes.
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Não tivemos especulação. Mas tinhamos adivinhação. Tinhamos Politica que é a sciencia da distribuição. E um systema social planetario.
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As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatorios, e o tedio especulativo.
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De William James a Voronoff. A transfiguração do Tabú em totem. Antropofagia.
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O pater familias e a creação da Moral da Cegonha: Ignorancia real das coisas + falta de imaginação + sentimento de authoridade ante a pro-curiosa [sic].[3]
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É preciso partir de um profundo atheismo para se chegar a idéa de Deus. Mas o carahiba não precisava. Porque tinha Guaracy.
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O objectivo creado reage como os Anjos da Queda. Depois Moysés divaga. Que temos nós com isso?
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Antes dos portuguezes descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
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Contra o indio de tocheiro. O indio filho de Maria, afilhado de Catharina de Medicis e genro de D. Antonio de Mariz.
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A alegria é a prova dos nove.
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No matriarcado de Pindorama.
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Contra a Memoria fonte do costume. A experiencia pessoal renovada.
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Somos concretistas. As idéas tomam conta, reagem, queimam gente nas praças publicas. Suprimamos as idéas e as outras paralysias. Pelos roteiros. Acreditar nos signaes, acreditar nos instrumentos e nas estrellas.
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Contra Goethe, a mãe dos Gracchos, e a Côrte de D. João VIº.
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A alegria é a prova dos nove.
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A lucta entre o que se chamaria Increado e a Creatura – illustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabú. O amor quotidiano e o modus-vivendi capitalista. Antropofagia. Absorpção do inimigo sacro. Para transformal-o em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realisar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males cathechistas. O que se dá não é uma sublimação do instincto sexual. É a escala thermometrica do instincto antropofagico. De carnal, elle se torna electivo e cria a amizade. Affectivo, o amor. Especulativo, a sciencia. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia agglomerada nos pecados do cathecismo – a inveja, a usura, a calumnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e christianisados, é contra ella que estamos agindo. Antropofagos.
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Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema – o patriarcha João Ramalho fundador de São Paulo.
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A nossa independencia ainda não foi proclamada. Frase typica de D. João VIº: – Meu filho, põe essa corôa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dynastia. É preciso expulsar o espirito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
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Contra a realidade social, vestida e oppressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciarias do matriarcado de Pindorama.


OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga.Anno 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.[4]
In: Revista de Antropofagia, São Paulo, 1 (1), maio de 1928.
Notas:
[1] Baseado na edição fac-similar do primeiro número da Revista de Antropofagia, que consta da Caixa modernista, organizada por Jorge Schwartz e publicada pela Edusp/Imprensa Oficial em 2003.
[2] “Lua Nova, ó Lua Nova, assopra em Fulano lembranças de mim.” In: O selvagem, de Couto de Magalhães.
[3] Provavelmente um erro de impressão. Talvez deva-se ler “prole curiosa”.
[4] O Bispo Pero Sardinha foi devorado pelos caetés em 1556.


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