Música: É o inverno que acaba, é a neve que derrete


Stacey Kent, a jazzista que gravou 'Águas de Março' em francês, se apresenta no Brasil. Sua vinda faz pensar: por que só se vertem músicas brasileiras antigas? E por que as letras mudam tanto o sentido original?

Por Barbara Heckler



Um dos sucessos do novo CD da jazzista norte-americana Stacey Kent - que se apresenta neste mês em quatro cidades brasileiras - é a música Les Eaux de Mars, versão para o francês de Águas de Março, de Antônio Carlos Jobim. A canção está no oitavo álbum da cantora, Raconte-Moi..., composto por clássicos da música francesa e algumas versões como essa, feita pelo intérprete egípcio Georges Moustaki. Na letra em francês, as famosas águas de março que fecham o verão - inspiradas num ribeirão localizado no sítio do cantor, no município fluminense de Poço Fundo - viraram as águas do degelo no inverno europeu, o período em que a neve derrete, marcando o início da primavera. Stacey Kent é um caso raro de cantora fascinada por idiomas. Antes de se dedicar à música, estudou línguas na Europa. Neste momento, se aprofunda no estudo do português - talvez planejando lançar, no futuro, um álbum em nossa língua. Além de ser uma beleza de interpretação, Les Eaux de Mars, que abre o CD, deixa no ar duas questões. Por que as músicas brasileiras escolhidas pelos versionistas são sempre as mesmas e têm pelo menos 40 anos de idade? E por que grande parte delas muda tanto o original?
As versões de canções nacionais para outros idiomas, principalmente o inglês, se concentram em duas décadas: as de 1940 e 60. São essas as épocas de maior sucesso da música brasileira no exterior por causa da explosão de Carmen Miranda (nos anos 40) e do modismo internacional em torno da bossa nova (na década de 1960). O grande clássico da primeira época é Brazil, a versão para o inglês de Aquarela do Brasil, obra-prima de Ary Barroso - que muitos consideram melhor do que a original por não trazer versos estrambóticos, como "Ah, esse coqueiro que dá coco" (imagine um coqueiro que desse jacas...). Ary foi um dos artistas brasileiros favorecidos pela chamada Política de Boa Vizinhança, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial - na qual o presidente norte-americano Franklin Roosevelt queria estreitar as relações com os regimes democráticos das Américas, o que incluía, paradoxalmente, o governo ditatorial de Getúlio Vargas.
Em visita ao Brasil, o diretor Walt Disney ouviu Aquarela do Brasil e teve a inspiração para sua animação Saludo Amigos! (Alô Amigos!), na qual estreou o personagem Zé Carioca, o papagaio de chapéu e sombrinha. A canção virou trilha do filme e Ary foi convidado para ser diretor musical nos estúdios Disney. Reza o anedotário que o compositor, rubro-negro doente, declinou do convite de morar nos Estados Unidos com a justificativa: "Não senhor, aqui não tem Flamengo".
Já a saga das versões da bossa nova se confunde com a história do principal compositor do movimento, Tom Jobim. Ele foi um bom versionista de suas próprias canções. Waters of March, a Águas de Março no idioma de Shakespeare, atesta isso. Tom manteve a métrica do original, fazendo algumas modificações de ordem semântica. "Um dia, eu estava meditando em cima do verso 'é um espinho na mão, é um corte no pé' e percebi tudo. Como é que um americano iria cortar o pé se ele nunca anda descalço?", disse o músico em entrevista à extinta revista Manchete. A versão entrou no repertório de grandes cantores, como Art Garfunkel, Al Jarreau e Cassandra Wilson, e a resposta do compositor ao jornalista é uma definição perfeita do que é uma versão que viaja bem. Seria aquela que preserva a musicalidade original, adaptando a letra à realidade do país de chegada, como, justamente, Les Eaux de Mars, de Georges Moustaki.

GAROTA SEM IPANEMA
Outro exemplo é a já citada Brazil, cuja letra, poeticamente, fala da saudade de um amor vivido numa nação tropical, em versos bem construídos, como "Where hearts were entertaining June/ We stood beneath an amber moon/ And softly murmured 'someday soon'" (Quando os corações se divertiam em junho/ Ficávamos sob a lua amarela/ E murmurávamos baixinho "algum dia, em breve"). A versão é do norte-americano Bob Russel. Também bem-sucedida é a versão de Madureira Chorou, da dupla José Prudente de Carvalho, o Carvalhinho, e Júlio Monteiro. O samba de maior sucesso no Carnaval de 1958 foi feito em homenagem a Zaquia Jorge, vedete do subúrbio carioca que morreu afogada no mar. Em francês, o compositor turco Dario Moreno mudou o título para Si Tu Vas à Rio (Se Você For ao Rio) e limou da letra a intenção de tristeza. Mesmo carregada nos estereótipos de brasilidade, a letra é de bom gosto e foi um considerável sucesso na França. Prova de que a versão não tem que ser fiel para ser boa.
Claro que tudo tem limite. O risco de uma empreitada dessas dar errado é grande, e foi esse o motivo de Tom Jobim ter assumido a tarefa de verter as próprias músicas. "Versão é a coisa mais ingrata que existe", disse Tom em carta ao amigo Vinicius de Moraes publicada em sua biografia escrita pelo jornalista Sérgio Cabral. Com a sua Garota de Ipanema, Tom fez questão de acompanhar de perto o trabalho do compositor Norman Gimbel e impediu que tirassem a palavra "Ipanema" do título. O autor da letra em inglês insistia em dizer que o nome da praia carioca lembrava a marca de uma pasta dental chamada Ipana. Tom insistiu e o título se manteve. No entanto, o versionista fracassou quando reproduziu o ritmo dos versos, item de extrema importância por remeter ao gingado da adolescente Helô Pinheiro, musa inspiradora da canção. "Como fazer Gimbel entender que aquele balanço era o dos quadris de alguma deusa dourada?", escreveu o jornalista Ruy Castro em seu livro A Onda que Se Ergueu no Mar. A métrica foi comprometida. As cinco sílabas iniciais "Olha que coisa..." foram transformadas em três: "Tall and tan...". A manobra assassinou o ritmo sincopado, principal característica da música brasileira, e colocou no lugar uma batida quadrada impossível de sambar. Os norte-americanos, no entanto, gostaram. Girl from Ipanema encabeça o pódio das músicas brasileiras mais executadas nos Estados Unidos - ao lado de Brazil e de Tico-Tico no Fubá.

VERSÃO É CONSAGRAÇÃO
A conselho de Vinicius, Tom substituiu Norman Gimbel por Ray Gilbert e depois por Gene Lees. Deu-se bem com esse último, autor de Quiet Night of Quiet Stars (Corcovado) e Song of the Jet (Samba do Avião), entre outras. Elas mudam bastante o original -em Quiet Nights, Lees fala de um lugar de onde dá para ver o mar e o Corcovado da mesma janela, o que só é possível em alguns bairro como a Urca -, mas mesmo assim respeitam aqualidade poética e a métrica.
Depois dos anos 40 e da bossa nova, músicas brasileiras são vertidas para outros idiomas apenas esporadicamente. Foi o que ocorreu, por exemplo, nos anos 70 com Chico Buarque, Toquinho e Vinicius de Moraes, que passaram uma temporada na Itália. Eles tiveram várias músicas traduzidas para o idioma de Dante pelo compositor Sérgio Bardotti, mas nada comparado a Jobim.
Idealizador dos grandes festivais de música na década de 1960, e atualmente apresentador de um programa de rádio, o estudioso Solano Ribeiro acredita que os compositores de hoje, mesmo os que têm carreira no exterior, não atingiram ainda o nível de consagração internacional de Ary Barroso e Tom Jobim. São talentosos - mas para merecer uma versão teriam que estar em outro patamar. Ser traduzido, ainda que mal traduzido, é talvez o maior índice de consagração internacional. Enquanto isso, cantores como Stacey Kent continuam o resgate do passado. Ótimo para eles, já que uma obra-prima como Águas de Março nunca será demais no repertório de um intérprete de bom gosto.

ONDE e QUANDO: Turnê Raconte-Moi... de Stacey Kent. Onde: Via Funchal (São Paulo), Teatro Municipal de Itajaí (Itajaí), Teatro Bourbon (Porto Alegre) e Vivo Rio (Rio de Janeiro). Mais informações nos sites de cada local. Quando: de 9 a 16 de setembro. Preços variados.

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Comentarios

Bom día Andrea,

Acabei de ler todo o seu artículo, e tem tanta informação junta e tão misturada, que ao final, a única coisa certa, é que parece que você só gosta de falar das distintas línguas das músicas, e que também gosta de Georges Moustaki (personagem que eu detesto).

A Bossa Nova é Samba Tradicional + harmonías acordes disonantes + contratempos + silêncios
Só isso, simples demais /Saludos.

odeon14360 / Bossa Nova clube
http://www.bossanovaclube.blogspot.com
dadamax ha dicho que…
Buenas noches Odeon14360!

muchas gracias por tu comentario.
Muy interesante tu blog, creo que sólo le faltan links de cd's de bossanova...

saludos desde Chile
Sergio

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