Literatura: Os livros de 2010
As escolhas de Eduardo Pitta, Helena Vasconcelos, Isabel Coutinho, José Manuel Fernandes, José Riço Direitinho, Maria Conceição Caleiro, Pedro Mexia, Rogério Casanova, Rui Catalão e Rui Lagartinho
Depois de Lillias Fraser (2001), "Adoecer"; não há nenhum romancista português de agora a escrever com esta grandeza soberana. Ficção biográfica sobre Elizabeth Siddal (1829-1862), artista e musa dos pintores pré-rafaelitas, investiga com empatia e detalhe uma corrente "doentia" da cultura e da alma inglesas, que Hélia bem conhece, mas é também um retrato do romantismo como patologia exaltante. P.M.
Benjamin Moser passou os últimos cinco anos a trabalhar na primeira biografia de um escritor brasileiro escrita por um autor de língua inglesa: "Clarice Lispector - Uma Vida". Quando foi lançado nos EUA, em 2009, foi considerado um dos melhores livros do ano pelo "The New York Times" e pelo "Los Angeles Times" e o mesmo aconteceu no Brasil. Moser foi à Ucrânia, onde Lispector nasceu, e descobriu aspectos menos conhecidos da vida da escritora e da sua família. Esta biografia lê-se como um romance. I.C.
Foi necessário esperar 50 anos para lermos a primeira grande biografia política, realizada por um historiador, de António de Oliveira Salazar. Tirando o melhor partido da investigação recente, da abertura dos arquivos e de uma distância temporal que permitiu fazer baixar as paixões políticas, esta obra traça um retrato frio de um homem que "durante a maior parte das quatro décadas [em que governou teve como] principal prioridade manter-se no poder". Como o Portugal moderno continua marcado por essas quatro décadas, esta biografia do político mais influente do século XX português também nos ajuda a perceber que país somos. J.M.F.
"Uma Viagem à Índia" mimetiza "Os Lusíadas". É uma ficção em verso. Mimetização não como paródia, embora o humor e a ironia estejam lá. A frio, como sempre no autor. "Uma Viagem à Índia" é outra coisa, é uma voz narradora plural a emergir depois do caos, depois do século XX, e que torna sensível o passado que vai revisitando, diferindo o regresso, adiando-o, como um extraterrestre prenhe da irrenunciável memória acumulada, qual ethos sebaltiano que arrasta em filigrana toda uma literatura sendo ele próprio emblema da literatura, cuja doxa finta convertendo-se nela. Assombroso, este livro. M.C.C.
A vida do diplomata irlandês Roger Casement tinha tudo para dar um excelente romance. "O Sonho do Celta" é um libelo contra a opressão de certas raças por outras em nome do desenvolvimento, mas é também uma tentativa de perceber as contradições de quem sonha acordado. Aos 74 anos, o Nobel da Literatura 2010 escreve com a frescura de um enviado especial ao Congo Belga e à selva Amazónica de há cem, cento e vinte anos. Num contexto em que a homossexualidade de Casement poderia revelar-se uma armadilha para qualquer ficcionista menos experiente, Llosa desfaz o nó com uma elegância admirável. R.L.
Enquanto não chega "Point Omega", último em data na obra do autor, a edição portuguesa foi buscar um DeLillo vintage: "Submundo", o épico de 1997 que subsume o mundo contemporâneo: solipsismo, consequências da guerra fria, rebeldes sem causa, Vietname, sida, lixo nuclear das antigas repúblicas soviéticas, assassinos em série, construção do império americano... Keith Haring não falta. Nem o "Black & White Ball" que Truman Capote deu no Plaza de Nova Iorque em Novembro de 1966. Colosso literário lhe chamaram, e com razão. E.P.
O norueguês Kjell Askildsen criou um universo literário onde não há lugar para retratos bucólicos: as personagens, das quais quase não são feitas descrições físicas, vivem perto de um abismo imenso, silencioso e ameaçador, que as espera. As dificuldades sentidas em se conhecerem, e também àqueles que lhes são próximos, cria um mundo cínico, cheio de estranhos sentimentos incubados. Esta obra é um trabalho corajoso sobre a inevitabilidade da solidão humana e do nosso irremediável desconsolo emocional. J.R.D.
"O primeiro tema da reflexão grega é a justiça", diz um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen. Justiça ou justeza é também um tema primeiro da poesia de Sophia, que se faz de rectidão ética em linguagem ática. Depois da poesia reunida em três volumes e de uma reedição livro a livro, eis agora a obra poética num único tomo, organizado por Carlos Mendes de Sousa. Uma edição de referência, em todos os sentidos. P.M.
O último livro de Tony Judt tem o valor de um testamento. Escrito já depois de se ter declarado a doença que se revelaria fatal, é o livro mais político de um dos historiadores que melhor retratou a Europa do pós-guerra. Profissão de fé na social-democracia, escrito para ser lido pelos mais novos, faz a apologia dos valores políticos de um tempo que já passou. Judt gostaria que esse tempo regressasse, mas mesmo quando o realismo e a economia nos levam a concluir que isso não é viável, a inteligência desta obra desafia-nos a questionar certezas e, claro, descontentamentos. J.M.F.
O que acontece quando um grande escritor, conhecedor das manobras da contra-informação e calejado observador do "grande jogo" da espionagem, junta um mafioso russo especialista em lavagem de dinheiro, uma família exótica, um casal de ingénuos ingleses, políticos gananciosos, banqueiros astutos e velhos rapazes em fatos de tweed com saudades da Guerra Fria? Com a Inglaterra a sofrer a recessão, nas águas turvas das alianças entre o poder e o dinheiro, Le Carré cria um brilhante romance cómico que remete o leitor para um mar de conjecturas, activamente alimentadas pela actual questão das Wikileaks. H.V.
No passado Verão, Alexandra Lucas Coelho andou durante três semanas pelo México, de Ciudad Juárez, no deserto de Sonora, à selva do Yucatán - pudemos ler-lhe as reportagens neste jornal. Como resultado da viagem, escreveu o delicioso "Viva México", que mais do que um diário é um livro de histórias, de histórias verdadeiras onde a autora comete o prodígio de partilhar com o leitor todo o assombro, o choro e a alegria, o horror, e a comoção de viajar. Este é um livro para saborear devagar. Como uma "delicatessen". J. R. D.
"Lamento muito que o meu pai não esteja a viver a terceira idade, por isso decidi inventar uma terceira idade para nós, malucos os dois", escreve valter hugo mãe, numa nota do autor no final do romance "a máquina de fazer espanhóis". A história começa quando António Silva, 84 anos, barbeiro, vai para o Lar da Feliz Idade, depois da morte da sua mulher. E parte para uma reflexão sobre a velhice, sem paninhos quentes, na escrita peculiar e poética, irónica e ao mesmo tempo crua do Prémio José Saramago 2007. Um olhar sobre o que é isto de ser português, ser do país que durante anos louvou a Pátria, Deus e a Autoridade. "sinto angústia" é a última frase do livro e já diz tudo. I.C.
Romance soberbo e prodigioso em que o canadiano Robertson Davies cria um mundo narrativo de personagens extraordinárias, de grande complexidade moral (algumas com vidas não vividas como resultado de sombrios sentimentos de culpa criados por uma herança religiosa que as condiciona moralmente), e que ele disseca com clareza e argúcia recorrendo a um realismo inventivo e singularmente inteligente. Esta é uma história como já se escrevem poucas: sólida, melancólica, e de uma elegância quase vitoriana. J.R.D.
Keith Narring, o protagonista de "A Viúva grávida", teve vinte anos na década de 70 do século passado. Passados quarenta anos, resume assim a revolução sexual: "Vê-se o que vai, vê-se o que fica, vê-se o que chega." Resigna-se: "Costumava haver o sistema de classes, e o sistema de raças, e o sistema de sexos. Os três sistemas desapareceram ou estão a desaparecer. E agora temos o sistema de idades". "Viúva grávida" é um retrato, azedo, mordaz, terno e fatalmente caótico de um escritor que não quer ser velho. R. L.
"Verão" faz parte de uma trilogia supostamente autobiográfica e é antecedido por "Infância" (1997) e "Juventude" (2002). Se nos dois primeiros volumes Coetzee construiu um retrato distorcido da sua trajectória, em "Verão" leva mais longe a cruel zombaria em relação a si próprio e cria uma "outra-biografia póstuma", através de um tal Vincent que tenta escrever a história do famoso John Coetzee, vencedor de um Nobel e de dois Booker mas com sérios problemas de relacionamento com as mulheres, amigos, familiares, e, principalmente, com o país onde nasceu e foi criado. Fazendo uso da sua linguagem frugal e ironia gélida, Coetzee relata as desventuras de um eterno inadaptado cuja inteligência fulgurante lhe não permite a paz da idiotia. H.V.
O primeiro volume, com coordenação de Bernardo Vasconcelos e Sousa intitula-se "A Idade Média". A colecção, que tem como modelo a clássica "História da Vida Privada", de Georges Duby, terá quatro volumes, cada um com um coordenador (Nuno Monteiro, Época Moderna; Irene Vaquinhas para o século XIX e a primeira metade do século XX; e Ana Nunes de Almeida para a segunda metade do século XX). I.C.
Desenterra os fantasmas mais profundamente enraizados na psique americana: o assassinato de Kennedy, o Vietname e o sinistro papel desempenhado pela C.I.A. no Sudoeste asiático. A acção estende-se de 1963 a 1970 - com um capítulo final passado em 1983 - e vai focando as acções de várias personagens, algumas das quais fazem, apenas, aparições-relâmpago numa narrativa fragmentada, estilhaçada e construída como uma montagem aleatória de quadros que se vão interligando penosamente, num reflexo da dificuldade em encontrar algum sentido na confusão da guerra, na determinação das lealdades e na cruel luta pela sobrevivência. H.V.
Walter Benjamin foi um "místico marxista". O texto sobre o progresso e a catástrofe, que parte de um quadro de Klee ("Angelus Novus"), é uma peça central no pensamento da modernidade, e encabeça um conjunto de ensaios sobre a História enquanto conceito e destino. É o quarto volume da colecção das obras escolhidas de Walter Benjamin, da responsabilidade de João Barrento. "Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval". P.M.
A velhice, a morte, a decrepitude da vida familiar abordadas com uma frontalidade estarrecedora e desconcertante. Neste livro de 1959, Muriel Spark consegue ser mais incisiva do que Patricia Highsmith. A proximidade da morte é o Mr. Ripley desta história. As personagens estão apavoradas e o leitor é convidado a comportar-se com a inclemência de um psicopata: não ter piedade por quem está a morrer. R.C.
Kenneth Tranctenberg é especialista em literatura russa. Benn Crader é um botânico famoso. São tio e sobrinho e atraem-se como dois pólos. Quando estão juntos, mundo adentro, tudo se discute: os cartoons de Charles Addams, o cinema de Hitchcook a fatalidade de alguém escolher todos os dias almoçar chili com carne. São as bizantinices do mestre Bellow. O essencial está na discussão do amor e a sua consequência: "Salta uma centelha do termóstato e o calor do amor faz explodir uma bomba que nos cremará." R. L.
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