Fotografía: Lonely planet

30.01.2009 - Óscar Faria

"Terra Natal" é o título da exposição que reúne até 15 de Março, na Fundação Cartier, em Paris, o fotógrafo e cineasta Raymond Depardon e o urbanista Paul Virilio. Das línguas em vias de extinção às migrações massivas da população, uma mostra sombria, apesar do aparato visual, onde também se define a "ultracity", a cidade localizada em todo o lado que nos chega através do telemóvel.


É um curto monólogo. O tempo de atravessar a Passage d'Enfer, em Paris: 160 metros de comprimento por dez de largura. Ali, entre casas dos anos 1950, nesse lugar onde antes se situava o Bois d'Enfer, sítio de má reputação, Paul Virilio introduz "Terra Natal", a exposição que partilha, ou melhor, divide com Raymond Depardon, na Fundação Cartier, instituição vizinha dessa pequena artéria peonal oitocentista, em forma de L, que liga o Boulevard Raspail à rua Campagne-Première. Registado em vídeo, o passeio no inferno - diz-se que Rimbaud escreveu parte da sua obra por essas bandas; e lembre-se o título de um dos seus livros maiores, "Une Saison en Enfer" -, local onde também se situou a Escola Freudiana de Paris, dirigida por Jacques Lacan, termina com um desafio lançado pelo peripatético filósofo e urbanista ao visitante: "a rua é o nosso futuro ou o nosso passado?"

A velocidade do urbanista...

A exposição arranca na fachada do edifício de Jean Nouvel, Emanuel Cattani e Associados (1994), onde, nas paredes em vidro, foram instaladas seis imagens verticais, de grandes dimensões, a preto e branco e a cores, de Raymond Depardon. Esses estáticos ecrãs - a sua aparição, naquele espaço, permite essa leitura -, apontam, desde logo, para determinadas oposições, desenvolvidas depois nas salas da Fundação Cartier. Tratam-se, aquelas, sobretudo, de dicotomias relacionadas com o modo de habitar o mundo: de um lado a metrópole a perder de vista, o congestionamento automóvel, a apressada solidão urbana; do outro a paisagem gelada, infinita, a estrada vazia, a velhice com os pés assentes na terra. A velocidade do urbanista em contraste com a lentidão do fotógrafo: assim se pode resumir "Terra Natal", mostra onde o desaparecimento das línguas menores, minoritárias, é confrontado com outro acontecimento que lhe é contemporâneo, a migração de 1 bilião de pessoas até 2040.

Paul Virilio recorda que, se para Fernand Braudel, a migração, na Europa, não constituiria em si um problema, pois tais movimentos sempre existiram, já a ideia do velho continente deixar de ter camponeses, situação devida ao êxodo rural, essa, sim, segundo o historiador, era uma realidade nunca vista. O filósofo prolonga esta reflexão e vai mais bastante mais longe, ao afirmar que hoje vivemos o tempo do êxodo urbano - Virilio chega mesmo a falar de deportação, com todo o alcance desta palavra, nomeadamente quando associada a determinados genocídios - do qual irá emergir uma Europa sem cidades, "onde tudo flui, onde tudo escapa", algo de inédito. Nesse novo mundo, a identidade do indivíduo, até agora ligada ao lugar do nascimento, à "terra natal", irá ser substituída por uma "trajectividade": uma pessoa passa a ser o seu trajecto, puro e simples, sendo, com esse objectivo, "submetida a uma permanente televigilância, através de sistemas codificados, ondas, etc." Esta mutação coloca em causa a sedentariedade, a localização, em benefício de uma mobilidade em permanente controle.

... a lentidão do fotógrafo...

No interior da Fundação Cartier, a exposição "Terra Natal", que tem como subtítulo "noutro lugar começa aqui" ("ailleurs commence ici"), encontra-se dividida em duas partes. No rés-do-chão é possível assistir a duas obras realizadas por Depardon para a ocasião: num ecrã de grandes dimensões é exibido "Donner la Parole", enquanto numa outra sala tem lugar a dupla projecção "Le Tour du Monde en 14 Jours", que actualiza em imagens "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias", de Júlio Verne. Segundo o realizador, o primeiro filme "não é uma curta-metragem, não é uma reportagem, parece-se com um soco." Nele, o cineasta entrevista, dando-lhes a palavra, representantes de povos cuja língua está em vias de extinção. Afar (Etiópia), Bretão (França), Chipaya (Bolívia), Guarani (Brasil), Kawésqar (Chile), Mapuche (Chile), Ocitânio (França), Quechua (Bolívia) e Yanomami (Brasil) são os nomes dessas línguas ameaçadas por motivos económicos, políticos e sociais. Como nota Depardon, este trabalho, "fala de uma certa dor, da solidão, do orgulho de ser uma minoria."

"A Volta ao Mundo em 14 Dias" é o reverso de "Dar a Palavra". Agora as imagens revelam uma deriva pelas grandes metrópoles, os dias consomem-se numa perpétua viagem, um périplo sem vozes, apenas esse trajecto solitário, do Leste para o Oeste, uma espécie de zapping geográfico pontuado pelo nome de cidades: Washington, Los Angeles, Honolulu, Tóquio, Cidade de Ho Chi Minh, Singapura e Cidade do Cabo. No fim, tudo se assemelha, as diferenças deixam de ser perceptíveis, há uma ininterrupta urbe ligada por rápidos meios de transportes, telemóveis, redes digitais. Lonely planet.

... e um furacão de imagens

Na cave do edifício encontra-se a instalação proposta por Virilio, que, para a sua materialização, contou com a colaboração de uma equipa de artistas e arquitectos formada por Diller Scofidio+Renfro, Mark Hansen, Laura Kurgan e Bem Rubin. A cenografia é composta pelo vídeo registado na Passage d'Enfer - o urbanista surge ali, nesse trajecto, à nossa escala, confrontando o espectador, recorde-se, com a pergunta "a rua é o nosso futuro ou o nosso passado?" -, por um "furacão de imagens" emitidas por cinquenta ecrãs alinhados no tecto - uma régie vídeo que dá a ver uma realidade com origem em "arquivos provenientes de telejornais, documentários e fotografias" - e, finalmente, por uma sala onde é revelada "uma cartografia inédita, que oferece uma visualização dinâmica das migrações de populações, e das suas causas, através de uma projecção circular que cria um ambiente imersivo." Os dados coligidos neste espaço e apresentados de forma dinâmica, visualmente sedutora, foram divididos em quatro "animações" temáticas: "População e migrações urbanas", "Dos fluxos de homens e de dinheiro", "Refugiados políticos e migrações forçadas" - aqui, o fluxo visível nos mapas adquire a dimensão de uma praga, tal é o enxame que se desloca, imparável, de sítio em sítio -, e "Dos mares que sobem, das cidades que desaparecem."

Oiça-se ainda Virilio, agora na Internet, no site dedicado à exposição. O urbanista fala-nos agora da "omnipolis", a cidade que está em todo o lado e em lado nenhum, essa urbe que se antes era o lugar de eleição, agora é o território de ejecção: "stop eject". Caminhamos assim para a "ultracidade", a cidade localizada em todo o lado, no mesmo instante, "a cidade da sincronização, da 'tracibilidade', quer dizer, da circulação habitável, onde, graças aos telemóveis, os sedentários estão em todo o lado em casa - no elevador, no avião -, e onde os nómadas estão em lugar nenhum, excepto na rua, em campos, em tendas..." Tudo isto põe em causa "não só a identidade local de um indivíduo, as fronteiras de um estado, ou de uma cultura, mas também a habitação." Virilio propõe então outra questão: "Terra natal, terra fatal", cabe-lhe a si escolher.

A viagem realizou-se no âmbito de uma bolsa de apoio à investigação atribuída pela American Center Foundation, New York

http://ipsilon.publico.pt/Neon/texto.aspx?id=222069

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