Música: Carminho, uma voz com a história do fado lá dentro
Ri-se com o desplante de uma garota de 24 anos. Mas ouçam-na cantar: voz tremenda, pura força da natureza, voz adulta, funda, não parece ter a idade que tem. Como é que uma garota pode ter tanto fado?
Combinámos encontrar-nos nos Pastéis de Belém e, claro, mal nos sentámos tivemos de provar a especialidade da casa. De imediato Carminho confessou que tinha de se controlar: que não resistia a um bom doce, que depois engordava e tinha de fazer dieta.
Disse tudo de rajada, a rir-se, com o desplante de uma garota de 24 anos. Mas ouçam-na cantar: uma voz tremenda, pura força da natureza, voz adulta, funda, segura, não parece ter a idade que tem. A Carminho que canta quase parece a antítese da Carminho garota.
Ouvimos falar dela pela primeira vez há três anos, pela boca de Camané, que nos incitava a ir ouvi-la à Mesa de Frades às segundas ou às quartas. Era uma promessa e agora tornou-se uma certeza: um tremendo disco de estreia, "Fado", que começou a nascer durante um ano que Carminho passou a viajar e a fazer trabalho de voluntariado - para só no regresso decidir a dedicar-se exclusivamente ao canto.
A mãe de Carminho, Teresa Siqueira, é ela própria fadista, e a filha cresceu a ouvir os discos da mãe. Mas não cresceu em bairros fadistas: dos dois aos 12 anos a família viveu no Algarve e só há 12 anos a família voltou para cima, para abrir uma casa de fados, o Travessa do Embuçado, por onde passou, entre outros, Camané, e onde, a partir dos 15 anos, começou a cantar com regularidade. Talvez por isso "Fado" seja um disco de fado quase sempre tradicional: porque foi com isso que Carminho cresceu, com o bom e velho fado.
Como é que uma rapariga pode ser tão rapariga e já tão mulher, como é que uma mulher pode ser tão mundana e tão funda, como é que uma garota pode ter tanto fado? Como pode, como diz Camané, uma garota destas "ter na voz a história toda do fado"?
Isso cabe a Carminho responder e ela fala de tudo com tremendo à vontade.
Pergunta inevitável: ouvia-se muito fado em casa dos seus pais?
Sim, e cantava-se imenso no carro, nas viagens, estávamos sempre a cantar. E lembro-me de assistir a noites de fado lá em casa, com cinco ou seis anos. Tenho umas fotografias, muito pequenina, de pijama, ao colo do meu pai, com quatro ou cinco anos, e os guitarristas e a minha mãe a cantar. Já era um gosto enorme. Toda a influência que tive de fado foi através da minha mãe e dos discos. Depois, quando vim para Lisboa já houve essa vivência de bairro, de casas de fado com fadistas.
Fomos viver para o Bairro Alto, na Rua da Esperança. Viemos por causa da Travessa do Embuçado, [casa de fados] que a minha mãe e o meu pai abriram. Depois fomos para Campo de Ourique, onde ainda vivo. É o meu bairro, mas convivi muito com Alfama e o Bairro Alto, onde a minha mãe me levava quando eu era mais pequena e onde agora vou pela minha perninha.
Com que idade é que começou a frequentar o meio fadista?
Aos 12 anos. Por causa de uma festa no Coliseu: perguntaram aos meus pais se tinham algum filho que queria cantar e os meus irmãos [que são três] disseram que não. Eu disse que queria e o meu pai disse que não, porque não queria passar vergonhas. Mas insisti e ele disse que eu podia ir se o Paquito, que tocava no Embuçado na altura, aprovasse. O Paquito [guitarrista da casa] disse que eu tinha tempo e era afinada: "Porque é que não hás-de deixar a miúda ir?". Eu cantava o "Fado do Embuçado" e mais nada. Adoraram, porque era como uma mascote, ter uma menina de folhos a cantar o "Fado do Embuçado". A partir daí, sempre que havia algum dia especial, a minha mãe levava-me ao Embuçado.
Nessa altura já apreciava aquela coisa de ter de se vestir e cantar com toda a gente a olhar?
Nesse dia chorei baba e ranho, furiosa, exactamente por causa do vestido. Tinha 12 anos, aquela idade em que já não se é muito criança, mas ainda não se é adulto. E nesse dia apareceram as filhas dos fadistas e dos artistas, todas vestidas de tops e alcinhas e saltos altos e a minha mãe enfiou-me umas sabrinas, uns collants e uma saia de flanela e eu bati com os pés e fiz uma birra. Já queria ir de lantejoulas para cima do palco. Ainda bem que a minha mãe teve bom senso.
Na adolescência passava muito tempo no restaurante dos seus pais?
Tinha aulas de manhã e depois à tarde gostava de ir com a minha mãe dar as voltas, comprar as velas, aquelas coisas de quem gere. Ia ao Embuçado naquela altura em que os empregados estavam a jantar, às seis da tarde, sete. Eles estavam sempre a empanturrar-me com petiscos. Se calhar foi daí que veio o meu gosto por comer. Em miúda tinha de comer às escondidas da minha mãe. Às vezes tinha de cantar e não conseguia. Estava tão cheia que não saía nada. Então a minha mãe mandava-me fazer becos. Junto ao Embuçado há um beco e a minha mãe mandava-me correr para cima e para baixo para moer o jantar.
Nunca teve uma paixoneta pelos fadistas ou pelos guitarristas?
Não, nada.
No liceu achava que a sua vida era diferente das dos outros miúdos?
Sim. Uma vez perguntaram-me se eu tinha passado alguma fase de negação em relação ao fado. Nunca cheguei a ter negação, mas escondia-o. Tinha vergonha, escondia-o dos meus colegas. Havia uns coleguinhas que gozavam comigo por eu cantar fado. Não sei se aquilo era gozar, mas eu sentia como gozo. Às vezes pediam-me para cantar - eu fazia um esforço para que isso não acontecesse, mas cheguei a ter de cantar em aulas e em festas de anos.
Quando estava a crescer, tinha orgulho da sua mãe ser fadista?
Tinha. Lembro-me quando ainda morava no Algarve e a minha mãe gravou um disco: fiquei de boca aberta quando ela deu uma entrevista para um jornal e saiu uma fotografia dela. Achei que a minha mãe era uma estrela mundial, que toda a gente a conhecia.
Gosta dos Queen, não é?
Adoro os Queen. Chorei baba e ranho quando o Freddie Mercury morreu. Tinha sete anos e enfiei-me dentro de um carro, no lugar do morto, e chorei baba e ranho. Tive a sensação de uma imensa perda. Porque eu ouvia imenso, sozinha, com essa idade. Pegava nos discos e ouvia por livre e espontânea vontade: Queen, Simon and Garfunkel, REM, Adamo. Até fundei um grupo de dança na minha escola: gravava as músicas para um leitor de cassetes e depois reunia umas amiguetas e fazíamos umas coreografias. Isto na terceira classe. Só que depois houve uma que era muito melhor que eu e expulsou-me do grupo.
Indo ao disco: Diogo Clemente, produtor, é um miúdo novo, não é?
É, tem menos um ano que eu. Mas já tem imenso currículo. É uma pessoa que vive no fado desde sempre: nas casas de fado, nas colectividades. É daqueles que desde pequenino já pegava na guitarra espontaneamente. O pai dele começou a tocar guitarra ao mesmo tempo que o filho porque o Diogo queria muito tocar. Os pais puseram-no no Conservatório muito cedo: chegou ao exame para ver se entrava e só sabia tocar fados. E entrou. Aos quinze anos já tinha sido convidado para tocar no Faia a ganhar dinheiro. Os pais é que fizeram questão que ele acabasse o liceu.
Acabou um curso, também.
Sim, de Marketing e Publicidade.
Como é que conciliou? Também já canta profissionalmente há anos.
O canto adaptou-se sempre aos estudos. Eu estudava, depois se podia cantava. Tinha aulas de noite, no IADE.
E como é que conheceu o Diogo?
Quando fui cantar para a Mesa de Frades. Ele tinha ido tocar para lá há pouco tempo. Desde aí tocamos e cantamos juntos há quatro anos.
Foi falando com ele ao longo dos anos acerca do que seria o disco?
Sim. Isto começou pouco tempo antes do disco se começar efectivamente a fazer. Mas eu já sabia o que queria: um disco que mostrasse a minha vida até ao dia de hoje ou até ao dia de hoje daqui a uma hora.
Mas é uma garota de 24 anos...
Não é muito e na experiência de fado menos ainda. Mas o que que queria era pegar nos fados que sempre cantei desde pequena e que para mim cresceram comigo, que olho de maneira diferente porque tenho outro olhar. Também queria cantar alguns fados que antes nunca tinha cantado.
Acaba por fazer o disco de forma familiar, com as pessoas que conhece.
Para mim essa foi a opção óbvia, porque quando pensava fazer as coisas de outra forma não me ocorria nada. Se calhar um produtor mais experiente e mais velho já teria um cariz muito próprio. E eu queria só retratar. E quem melhor do que o Diogo, que conhece a minha evolução, para retratar o que faço? Conhece a minha voz melhor que eu. Também queria transmitir a ideia de que o fado é um encontro de talentos mas também de conhecimentos. E isso acontece: chegamos a uma casa de fados onde nunca entrámos e podemos cantar os nossos fados à vontade, porque todos sabem e todos podem tocar para nós. E isso é fascinante.
Sendo nova gosta de fado clássico. Não há violoncelos ou pianos.
Neste disco, não. Achei que era importante mostrar aquilo que gosto mesmo de fazer e que as pessoas me dizem que sei fazer. Agora, não me sinto presa a nenhum tradicionalismo, a nenhuma forma musical.
Disse: "Aquilo que as pessoas me dizem que eu sei fazer". Quem são as pessoas cujo conselho é importante?
Os meus pais, os meus amigos - mesmo os que não têm nada a ver com o fado e não gostam de fado - e as minhas referências, como a Beatriz da Conceição, o Camané, o Carlos do Carmo, mesmo pessoas da minha idade como o Ricardo Ribeiro e o Diogo. Tudo pessoas que me criticam de forma que eu agradeço.
A Beatriz da Conceição ainda cantou no Embuçado.
Durante muitos anos. Por isso é que ainda é a minha referência. Não só por cantar como canta, mas por interagir comigo, por me contar histórias, por me criticar, por me ensinar.
Neste disco opta muito por poetas clássicos do fado...
É importante recuperar. Acho que há coisas antigas, lindas, que podem ser actuais com novas roupagens e que podem ser apresentadas a pessoas novas, que de outra forma nunca teriam acesso a elas.
E como é que as suas palavras competem nesse universo? Usa dois poemas seus.
Foi um atrevimento. Mostrei estes poemas ao Diogo, mas não tinha nada a ver com o disco. Era mais: "Olha, estou a escrever, que achas?". Ele escreve, é sensível às palavras. Gostou e depois sugeriu pôr esses poemas no disco. Fiquei um bocado incomodada com isso, por isso combinámos olhar para cada poema e para cada tema sem autores. Não fazer a obra sofrer por causa do obreiro nem vice-versa. E se os poemas não estivessem à altura dos outros iam embora. Apresentámos os poemas a pessoas que não faziam ideia de quem eram os autores e fizemo-los escolher 13 ou 14. Para experimentar. E pronto, acabaram por ficar. Claro que fez diferença serem escritos por mim, mas se fossem destoar do resto do disco tinham ficado de fora. Agora, em toda a forma de arte o que é bom fica e o que não é bom acaba por se diluir no tempo.
Há quanto tempo é que andava a escrever e a quem é que mostrava?
Desde que dei a volta ao mundo. Não mostrava a muita gente.
Foi viajar só ou fazer trabalho humanitário?
As duas coisas. Fui à Índia, à China, Malásia, Singapura, Vietname, Laos, Cambodja, Timor, Austrália, Nova Zelândia, Ilha de Páscoa, Peru, Bolívia, Chile, Argentina, Uruguai, Brasil.
Isso num ano?
Sim.
E onde é que fez trabalho humanitário?
Índia, Cambodja, Timor e Peru.
Quanto tempo é que ficou nesses quatro países?
Seis meses.
E o que é que lhe deu para ir?
Não queria ser "marketeer", não sabia o que queria fazer. Estava quase a acabar o curso e precisava de me conhecer melhor e de relativizar-me em relação ao mundo, para dar às coisas a importância que as coisas têm. Sou muito dramática e às vezes perco-me nas personagens. É importante sabermos quem somos, sabermos em que país vivemos, qual a relação de Portugal com os outros países, quais as prioridades. Percebi que Portugal é um país mínimo, um país onde as pessoas são pequeninas, com pouco mundo. Mas ao mesmo tempo é o país onde quero viver.
O que é que a impressionou mais?
A pobreza e a miséria. E, claro, a grandeza do mundo. Chegamos à Índia e pensamos: "Foi o meu Deus que criou isto. Ele conhece estas pessoas". A Índia e a China mexeram comigo. A China é um país impressionante. De fora parece um exército de formigas a trabalhar para o mesmo fim e depois aproximamos-nos e vemos que cada pessoa pensa que está sozinha e está sozinha.
Em que sítios ficava?
Pensões. Ou enfiava o saco-cama num lado qualquer.
O que é que a levou a escrever? Algum desespero perante o que via?
Não. Foi uma causa da contemplação. Um dos países onde escrevi muito foi em Timor. Estive um mês e meio numa comunidade que dava apoio às pessoas mais pobres e que dava formação aos jovens, coisas básicas, da higiene à costura. Fazíamos imensas viagens de carrinha, de caixa aberta, para ir às aldeias. E assisti a momentos únicos de beleza. O que me fez escrever foi contemplar a beleza. Um mar imenso, paisagens lindas, um pôr do sol brutal, pessoas ao meu lado a rir. Quanto mais simples é a envolvente mais vontade tenho de escrever.
A viagem não foi também uma espécie de fuga do destino fadista?
Não... Isso só a um nível superficial. Se eu quisesse dizer mesmo "Não, não quero" eu dizia.
Na altura já havia muita gente a dizer que estava na altura de gravar o disco.
Eu não fugi. Adiei. Sabia que não ia gravar o disco antes de fazer a viagem... Não estava preparada. Não sabia o que tinha para dar, por isso não podia dar nada. Tive de ir viajar para saber o que podia dar. Agora as pessoas podem gostar ou não gostar do disco, mas eu gosto muito dele e não duvido por um segundo daquilo que está dentro deste disco.
Quando voltou já era para fazer o disco?
Sim, já tinha a sensação plena que estava preparada. Tinha dito quer ia estar um ano fora e muita gente me dizia: "Olha que o comboio só passa uma vez" ou "É a última vez que vais ter esta oportunidade de cantar". Mas eu não tinha coragem para o fazer na altura.
Carlos do Carmo diz que faz parte de uma linhagem no fado que começa em Maria Teresa de Noronha. Isso faz sentido para si?
Ouvi muito a Maria Teresa de Noronha e gosto muito dela... Identifico-me com ela como me identifico com a Beatriz da Conceição ou com a Amália. Em coisas diferentes.
Chegou a conhecer a Amália?
Cheguei. Uma vez só.
Ela ouviu-a cantar?
Ouviu, nesse dia.
E pô-la ao colo e disse "Que linda menina"?
Não. Ela não gostava de ouvir crianças a cantar.
Na altura em que começaram a chover elogios isso não foi uma pressão adicional?
Os elogios são uma arma contra nós quando não nos conhecemos. As pessoas dizem-nos as coisas e das duas uma: ou somos muito pouco confiantes e não acreditamos em nada do que nos dizem ou somos uns deslumbrados e acreditamos em tudo o que nos dizem. Claro que é importante ter a aprovação dos outros mas acho que os meus pais foram fantásticos nisso: sempre tiveram uma grande necessidade de me situar.
Parece ter sido protegida.
Sim. Quando comecei a ir aos fados com os meus pais, só conhecia o Embuçado. Não conhecia o meio do fado. Fui muito protegida, mas essa protecção não me prejudicou. Eles não me escondiam o que existia, apenas tentaram encaminhar-me para aquilo que eles acharam que era mais seguro e melhor para mim.
Agora é uma esperança do fado. E depois?
Não tenho medo, sabe? Agora estou a viver isto e a gozar isto. Se eu começar a preocupar-me com o que vem aí não gozo o que estou a viver agora. As coisas foram sempre acontecendo. Há-de vir aí qualquer coisa.
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