Debate: Os milhões de poetas do Twitter


Já houve o tempo em que se acreditou que a linguagem seria capaz de formatar o modo de se pensar. Segundo esse raciocínio torto, indivíduos alfabetizados em alemão teriam, por causa de sua gramática modular e complexa, uma capacidade maior para a administração de conceitos simbólicos. Na mesma linha de pensamento, a simplicidade do japonês ajudaria o trabalho em equipe e a compreensão do futuro, os tempos verbais chineses explicariam sua relação com a eternidade e os pronomes neutros do inglês tornariam aqueles que o tem como língua-mãe mais abertos à idéia de igualdade de gêneros. Para provar essa hipótese descabida, sempre surgia como exemplo uma língua obscura que invertia a ordem do tempo, falada por alguma tribo muito desconhecida ou extinta, vivendo em algum lugar remoto demais para ser digno de nota.
É curioso ver que uma teoria dessas tenha sido levada a sério, se ela não passa em um simples teste de lógica: quem conhece alguém que tenha se tornado mais analítico, gregário ou tolerante simplesmente por falar outra língua? Ou que perca sua noção de tempo e espaço ao visitar lugares que praticam outras conjugações? Seria a saudade um sentimento restrito a quem fala a nossa língua?
É difícil crer que a linguagem seja capaz de restringir pensamentos. É bem mais fácil, no entanto, imaginá-la como instrumento de exercício mental. A compreensão e expressão de conceitos em outra língua força o indivíduo a repensar sua ordem, contexto e estrutura, em um processo que, se for contínuo e frequente, pode levar a uma revisão de idéias ou, no mínimo, em sua reorganização.
A língua não precisa ser estrangeira. Jargão e gíria, por exemplo, têm a vantagem de serem extremamente sintéticos. Quem os domina consegue expressar situações extremamente complexas com pouquíssimas palavras. O mesmo pode ser dito de um bom palavrão.
O Twitter não criou outra língua, por mais que tenha incorporado alguns termos técnicos ao já florido linguajar nerd. Mas o exercício de sintetizar, de fazer caber tanta coisa que se tem para falar em tão pouco espaço, é extremamente rico. Hoje, quando a infinidade de informação demanda uma seleção cada vez maior do que se deve ler (e que a velocidade da mudança relega praticamente tudo que for armazenado ao esquecimento), é cada vez mais importante dizer muito com poucas letras. 140 para quem tiver a intenção de ser lido, menos ainda para quem pretende ser retransmitido.
A formatação do pensamento por linguagem sempre foi uma desculpa esfarrapada para justificar preconceitos e ideologias. Hoje sobram especialistas a crucificar o digital do mesmo jeito que um dia já se acreditou que os livros isolariam as pessoas. O Twitter e seus equivalentes não restringem a linguagem nem o raciocínio. Em muitos casos, o que acontece é exatamente o contrário: ao forçar uma ideia à camisa de força de poucos caracteres, milhões de pessoas praticam a cada segundo uma versão simplificada de jogos de palavras que levam a aforismos, poemas e Hai-Kais, mesmo que não percebam.
Isso pelo menos para aqueles que se exprimam em versões do alfabeto latino. Para quem fala chinês, japonês ou matemática, em 140 caracteres cabe o mundo inteiro. E ainda sobra espaço para retuitar e ser retuitado.



Luli Radfahrer é Ph.D. em Comunicação Digital pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, onde é professor há 18 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, Estados Unidos, Europa e Oriente Médio. Mantém um blog com seu nomewww.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve quinzenalmente no caderno Tec da Folha e na Folha.com.




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